Bairros ricos de SP concentram filmes legendados, enquanto periferia e cidades fora da capital têm 78% de filmes dublados
23/12/2025
(Foto: Reprodução) Bairros ricos concentram filmes legendados e bairros pobres têm 78% de filmes dublados
Morar a poucos quarteirões de um cinema na capital ou na Grande São Paulo não significa, necessariamente, que você vai conseguir assistir ao filme que você quer da forma que você prefere. A não ser que exista da sua parte uma total indiferença entre as versões dublada e legendada, com o idioma original.
Um levantamento feito pelo g1, com base em sessões disponíveis numa das maiores plataformas de vendas de ingressos do Brasil, mostra que cinemas em bairros com renda média mais baixa têm pouca oferta de filmes com legenda. Na maioria dos casos, eles mantêm uma programação quase inteiramente composta por sessões dubladas (veja infográfico abaixo).
Já em regiões mais ricas da cidade, especialmente nas zonas Sul e Oeste, a oferta de sessões em idioma original é consideravelmente maior.
Pense na seguinte situação hipotética:
João mora em Interlagos, na Zona Sul, e quis ver um filme legendado no Shopping Interlagos na última quinta-feira (11). Não conseguiu porque só havia opções dubladas;
Então, procurou por alternativas mais próximas de sua casa;
Foi ao Shopping SP Market, na mesma região, mas caiu do cavalo: só sessões dubladas;
Andou mais um pouquinho pela Av. das Nações Unidas e chegou ao Boa Vista Shopping tentando encontrar o filme legendado, mas ficou na vontade;
Teve que exercitar a paciência e percorrer mais algumas quadras até chegar ao Mais Shopping, ao lado do Terminal Santo Amaro — encontrou frustração, já que só havia opções dubladas;
Apenas alguns quilômetros à frente, nos shoppings Parque da Cidade e Market Place, encontrou salas com filmes legendados.
Sessão de cinema no teatro Cultura Artística, em São Paulo
Gustavo Honório/g1
Isso não é apenas coincidência: os shoppings Parque da Cidade e Market Place estão localizados no Itaim Bibi, 9º distrito com a maior renda média da capital e 4º distrito com maiores índices socioeconômicos, segundo o Mapa da Desigualdade 2024.
Procurada pelo g1, a Abrablex, que representa Cinemark, Cinépolis, Cinesystem, UCI e Moviecom, não quis se posicionar. A associação não explicou como é feita a escolha para que um cinema receba filmes dublados ou legendados. As redes preferiram não dizer por que alguns cinemas oferecem apenas sessões legendadas — majoritariamente em bairros ricos —, enquanto outros disponibilizam apenas sessões dubladas.
'Tenho que ir para longe de casa'
Passando da hipótese para a realidade, o fotógrafo Caio Pimenta sabe bem como é essa dinâmica: para ver um filme legendado, chega a perder 3 horas apenas com deslocamento.
Morador do Jardim Ângela, no extremo Sul da capital, os cinemas mais próximos de sua casa são o Cine Araújo Campo Limpo, o Moviecom Boa Vista e o Cinemark do SP Market, que basicamente não oferecem sessões legendadas.
Amante da sétima arte "desde sempre", Caio conta que costuma ir ao cinema cerca de duas vezes por mês — e que seria mais assíduo se houvesse mais oferta na sua região:
“Às vezes, quero ver legendado, mas não tem próximo de mim, e tem filme que exige cinema. É excludente, pouco democrático, é uma ação preconceituosa. Parte do pressuposto que pessoas periféricas não conseguem se adaptar ao cinema legendado. Acho que eles pensam que nós, enquanto pessoas periféricas, não temos a sensibilidade para consumir esse tipo de arte".
O perrengue começa quando Caio quer assistir a filmes fora do circuito comercial, principalmente mostras sazonais ou produções estrangeiras, uns filmes mais "cult":
“A Cinemateca é meu lugar favorito de São Paulo. Gosto muito do CineSesc, porque eles passam filmes que fogem do circuito hollywoodiano, mas esses cinemas são longe. Então, tenho que ir para longe de casa, sim... Algum lugar que eu demoro mais de 1h30 para chegar, às vezes".
'Questão multifatorial', aponta pesquisador
Para Alfredo Suppia, pesquisador do Instituto de Artes da Unicamp, os dados revelam um fenômeno real, mas que exige cuidados na interpretação. Ele explica que a questão é multifatorial, e que as preferências de público e padrões de exibição são influenciados por fatores históricos, culturais e de mercado.
“Por que na Alemanha e na Itália os filmes são, historicamente, dublados, sendo que o letramento lá é muito maior?”, questiona. “Isso mostra que existem outros fatores que influenciam, além do nível socioeconômico.”
O professor aponta que a história da dublagem no Brasil também exerce influência nesse padrão, que até pode ter sofrido modificação nas últimas décadas.
“Nos anos 80 e 90, a televisão era muito dominada pela dublagem, mas isso não entrava no cinema. Não sabemos exatamente por quê. A partir dos anos 2000, começa uma ascensão dos conteúdos dublados no cinema."
"Agora, pode ser — e tudo indica que sim — que, se existe uma maior oferta de cinema dublado, é para aumentar o lucro de quem exibe cinema. Eles não fariam algo que iria diminuir o lucro. Por exemplo, é muito provável que 'Avatar' tenha arrebatado mais público por ter sido lançado com cópias dubladas em maior número", refletiu.
Um dado da plataforma Ingresso.com conversa muito com a observação de Suppia, já que um levantamento feito em 2021 mostrou que 73% dos ingressos comprados no Brasil foram para filmes dublados.
Segundo Carlos Calil, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP), a concentração de sessões dubladas em cinemas localizados em regiões mais populares não é um fenômeno novo nem aleatório.
Para ele, a oferta desigual de filmes legendados e dublados na cidade também está ligada a fatores históricos, culturais e de classe social.
Calil explica que, durante décadas, a própria classe cinematográfica brasileira atuou para barrar a dublagem no país. “Os próprios cineastas brasileiros impediram que houvesse dublagem no Brasil, alegando que, se fizessem isso, haveria um prejuízo para os filmes brasileiros”, diz.
À época, a avaliação era a de que tornar os filmes estrangeiros acessíveis ao público poderia afastar espectadores das produções nacionais, lógica que nunca se aplicou à televisão.
O professor destacou que a relação entre dublagem e classe social ficou mais evidente com a popularização do VHS e, depois, do DVD. “Quando chegou o DVD, os distribuidores americanos começaram a lançar os filmes em versão original em todo lugar.”
Então, os títulos chegaram também às locadoras das periferias, mas não tiveram boa aceitação, contou Calil. “O público popular começou a dizer: ‘A gente prefere dublado’.” Diante dessa rejeição, as distribuidoras passaram a oferecer versões dubladas com mais força. Para o pesquisador, esse fato ajuda a entender por que cinemas em bairros mais ricos concentram a maior parte das sessões legendadas.
Legendado x dublado em números
O levantamento feito pelo g1 analisou 1.267 sessões de cinema disponíveis em uma das maiores plataformas de venda de ingressos do país em um único dia de programação na capital e na Grande São Paulo:
Do total de sessões na capital, 423 sessões (52,9%) eram dubladas, enquanto 376 (47,1%), legendadas, o que indica certo equilíbrio entre as ofertas;
No entanto, o cruzamento dos dados da programação dos cinemas com os rankings socioeconômicos da Rede Nossa São Paulo mostra que a oferta de filmes legendados se concentra, de forma consistente, nos distritos mais bem posicionados nos indicadores de renda e de qualidade de vida da capital;
Nas regiões que aparecem nas primeiras colocações do ranking de renda média mensal — como Itaim Bibi, Jardim Paulista, Pinheiros, Consolação e Moema — a predominância de sessões legendadas é clara.
Em vários desses locais, cinemas exibem quase que exclusivamente filmes com legendas. É o caso do Itaim Bibi, que está entre os dez distritos com maior renda média mensal da cidade e também entre os primeiros colocados no ranking geral de indicadores sociais.
O contraste fica evidente quando os dados são comparados com distritos que ocupam posições mais baixas nos rankings. Em áreas com menor renda média mensal e piores indicadores sociais, a programação tende a ser majoritariamente — e, em alguns casos, exclusivamente — dublada, mesmo quando se trata de grandes redes de cinema.
Na Grande São Paulo, a diferença é ainda mais evidente, já que as cidades estão naturalmente afastadas do Centro (capital paulista);
Das 468 sessões analisadas, apenas 102 (21,7%) eram de filmes legendados;
Em Carapicuíba, Diadema, Itapevi e Suzano, as salas não contavam com sessões legendadas;
Em Itaquaquecetuba, apenas três; em Osasco, apenas 6 num universo de 44 sessões; em Santo André, também 6 num universo de 52 sessões; em São Bernardo, apenas 14 num universo de 75 sessões.