Sapateira recupera sentimentos e memórias com trabalho de restauração: 'Cuidar de sapatos é cuidar das lembranças'
25/10/2025
(Foto: Reprodução) Sapateira de Sorocaba recupera sentimentos e memórias com trabalho de restauração
Quando um familiar parte, seus itens pessoais se tornam lembranças, um consolo para quem permanece neste mundo. Às vezes, por mais irônico que pareça, um par de sapatos usado e com solas desgastadas carrega um valor sentimental único.
Em Sorocaba (SP), próximo ao terminal movimentado no centro da cidade, uma pequena entrada pintada de rosa chama a atenção de olhares mais atentos. Lá, Ana Maria Silva, de 57 anos, coleciona histórias dos seus 20 anos como sapateira.
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Rodeada por cachorros amorosos de diferentes tamanhos, a artesã se dedica à restauração de calçados, muitos deles, lembranças importantes para familiares. Por isso, afirma que é necessário ter muita responsabilidade e respeito pela história de cada cliente.
"Cuidar de sapatos também é cuidar das lembranças das pessoas. É preciso ter muito cuidado e paciência com o cliente que chega ao balcão, porque, de repente, você está lidando com sentimentos, não apenas com sapatos", afirma.
Ana conta que, quando um cliente chega com um calçado antigo, não diz de imediato que a restauração é inútil. Após anos de trabalho, compreendeu que paciência e cuidado com o atendimento são essenciais para garantir respeito e confiança.
"Já houve uma situação em que um rapaz chegou bastante alterado e perguntou se um sapato antigo tinha conserto. Eu respondi que seria possível consertar, mas que o preço seria muito alto. Até o aconselhei, dizendo que, se ele fosse ao centro, encontraria o calçado por apenas R$ 49, enquanto a restauração ficaria R$ 80", relembra.
No entanto, segundo Ana, o cliente continuou insistindo para que a restauração fosse realizada. Ainda irritado, o homem jogou o dinheiro no balcão e passou seu telefone, dizendo em seguida: "A hora que ficar pronto, você me avisa".
Ana Maria Silva trabalha como sapateira há 20 anos em Sorocaba (SP)
Fernanda Cordeiro/g1
Quando o cliente retornou à sapataria, pegou o calçado restaurado e o observou com atenção, conta Ana. O semblante que no primeiro encontro estava descontente, agora estava calmo, relembra. Com voz mansa, o homem pediu desculpas à sapateira e explicou que, anteriormente, havia levado o calçado a outro local, onde disseram que "não valia nada" e que "era lixo".
"Depois do pedido de desculpas, ele me revelou que sua mãe havia falecido cinco dias antes do Dia dos Namorados e que havia comprado o par de sapatos para o marido, seu pai. Cinco anos depois, seu pai faleceu e, durante todo esse tempo, não havia tirado o calçado dos pés", conta.
Após a revelação, a artesã lembra que acompanhou o cliente até o porta-malas do carro dele e avistou diversos pares de sapatos novos, nunca usados pelo pai do rapaz. "Ele me contou que pediu para restaurar o calçado velho porque guardaria como lembrança da mãe e do pai, um singelo presente dela para ele, que não tirou do pé por cinco anos", explica.
História e métodos de trabalho
Ana Maria Silva, de Sorocaba (SP), trabalha como sapateira e conta história de cliente
Fernanda Cordeiro/g1
Antes de ter o seu próprio negócio, Ana conta que trabalhou em uma sapataria durante um bom tempo. No local, ela não fazia a restauração dos calçados, apenas pintava e atendia os clientes.
"Vários fatores me incentivaram a ser sapateira. O primeiro foi minha saúde: eu sabia que a empresa não ia me aguentar muito tempo, ou eu não aguentaria a empresa. O segundo fator foi a perda do meu pai. Minha mãe entrou em depressão e eu preferi trabalhar por conta própria para cuidar dela", diz.
Durante todo esse tempo, a prática foi a professora de Ana, que aprendeu as técnicas sozinha. Inicialmente, começou a sapataria em uma área pequena, com prateleiras rústicas de madeira. Segundo ela, na época não existia máquina elétrica, apenas uma máquina de pedal.
"Atualmente, levo 20 minutos para fazer o que antes levava o dia inteiro. O tempo de trabalho evoluiu: há dez anos, um saltinho levava mais tempo, mas hoje consigo fazer sozinha. A tecnologia das máquinas mudou pouco, o que mudou foram produtos de acabamento, como graxa e tintas. Com prática, consigo restaurar sapatos rapidamente, inclusive em situações de urgência", explica.
Máquina de pedal utilizada por Ana Maria Silva, que trabalha como sapateira em Sorocaba (SP)
Fernanda Cordeiro/g1
De acordo com a artesã, o atendimento também muda conforme o tipo de calçado e serviço escolhido. "Sapatos de couro podem ser restaurados em um dia, já outros materiais exigem mais tempo devido à limpeza, pintura e secagem. Saltinho, polimento e restauração podem levar de 30 minutos a mais, dependendo da complexidade", diz.
Ela também conta que, além da restauração e da pintura, faz compensação em calçados, isto é, quando o cliente tem uma das pernas mais curtas e precisa de um calçado com elevação.
"Eu demorei um pouquinho para aprender essa técnica porque tinha medo. Mas comecei a fazer sob medida conforme orientação do médico. Geralmente, isso é feito apenas pela ortopedia, mas, infelizmente, às vezes é muito caro, e muita gente acaba andando sem o produto por não poder pagar. Então eu meço, faço as adaptações, e o médico aprova. Ele confere todo o processo antes da pessoa usar: verifica se está correto ou não, e só depois permite o uso", explica.
Ana Maria Silva, de Sorocaba (SP), utiliza diversas técnicas para restaurar sapatos
Fernanda Cordeiro/g1
Atualmente, a profissional trabalha ao lado do marido. Além disso, com o próprio negócio, pôde cuidar das filhas, que já não moram mais com o casal.
"Tenho lembranças boas na minha loja: cuidei da minha filha e pude sustentá-la. Hoje, minhas filhas têm 39, 35 e 30 anos, todas com suas trajetórias", conta.
Impacto pós pandemia
Ana Maria Silva, de Sorocaba (SP), é sapateira há 20 anos
Fernanda Cordeiro/g1
Após a pandemia de Covid-19 em 2020, Ana conta que o preço dos materiais aumentou significativamente e a procura pelos serviços diminuiu. Segundo a profissional, a queda se deve tanto à alta dos custos quanto ao impacto do isolamento.
“Muitos clientes, principalmente os idosos, se acostumaram a ficar mais em casa. Antes, eles vinham a cada quinze dias, e agora, aparecem a cada quatro ou seis meses. Mudou muito o pensamento e o tempo para sair. Alguns clientes faleceram, outros mudaram de cidade ou foram morar com os filhos. O fluxo caiu bastante”, lamenta.
“Apesar de tudo, ainda tenho clientes mais velhos e também jovens que valorizam restaurar peças por valor sentimental. São presentes de familiares ou objetos com história. Já restaurei calçados antigos que ninguém vai usar, apenas para guardar”, finaliza.
Ana Maria Silva, de Sorocaba (SP), usa uma máquina tecnológica para restaurar sapatos
Fernanda Cordeiro/g1
* Colaborou sob supervisão de Júlia Martins
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